quinta-feira, 5 de junho de 2008

Acúmulos e fartura (conto)

Ela adorava acumular coisas. Desde pequena, acumulava palavras, histórias, sorrisos, beijos e brincadeiras. O quarto era cheio de bonecas, cores e brinquedos. Para compensar o fato de não ter irmãos, acumulou também os amiguinhos. Comida era outra mania. Desde muito pequena, ela se sentia totalmente protegida na dispensa da avó. Ali, nunca faltava biscoito, doces e delícias em geral.

Quando ela virou adolescente, veio a separação dos pais e a diminuição da renda familiar. Foi quando ela passou a cultivar o estranho hábito de abrir os armários da madrasta. Sempre que lhe angustiava a falta de amor naquela casa, ela corria para o banheiro e escancarava o sorriso ao dar de cara com todos aquelas porções extras de cotonete, papel higiênico e pasta de dente. Aquilo lhe dava um alívio imenso.

A adolescência e a juventude também foram fases de acúmulo de namorados e casos passageiros. Ela não se contentava com um só amor, verdadeiro e duradouro. Se a relação acabasse de repente, como é que ela ficaria? Não ter um ou mais reservas era totalmente proibido.

E então, ela acumulou problemas, quilos a mais, lágrimas e, mais uma vez, amigos. Muitos pretensos amigos. Ela tinha que esquecer as próprias dores cuidando dos sofrimentos alheios. Ela adorava acumular os problemas de outrem. Veio a fase do acúmulo de festas, dias na praia e reuniões que varavam as madrugadas em sua casa.

Depois, na época da faculdade, ela não acumulou livros e estudo, mas sim trabalho. Como ela gostava de trabalhar! Ela nem precisava do dinheiro, nessa época, mas adorava acumular trabalho. E, com a renda do trabalho, começou a acumular mais coisas novas. Principalmente música e roupa. Dois vícios.

Quando ela engatou num namoro sério, deixou um pouco de lado os amigos. Mas continuava acumulando trabalho e roupas novas. E nas segundas-feiras, quando voltava da casa dos pais do namorado, acumulava reclamações. Ela sofria por gastar tanto tempo presa na casa dos outros. Não saía mais de casa, quase não via os próprios amigos. Só acumulava trabalho, muito trabalho, e horas à toa na casa dos sogros. Que saudades da sua vida de festas, saídas com os amigos... Que saudades da sua liberdade!

Então ela se casou. E continuou a acumular trabalho e roupas. No início do casamento, ela voltou a acumular reuniões com amigos em casa. Que maravilha! Agora ela não precisava mais ficar enfurnada o final de semana na casa dos outros. E cada dia vinha um amigo diferente curtir a casinha dela, lar dos recém-casados.

Foi nessa época que ela começou a acumular rolhas. Para cada vinho aberto e consumido em casa, ela guardava a rolha numa bandeja. Os amigos pararam de frequentar sua casa, mas a bandeja continuava se enchendo de rolhas. Então ela comprou uma garrafa de vidro gigante, que hoje tem metade de sua extensão lotada de rolhas.

A menina que acumulava trabalho não tem mais trabalho e, por conta disso, teve que parar de acumular roupas também. Não há mais dinheiro para acumular nada. Só acumula histórias (ela não pára de escrever) e reclamações do marido, que continua acumulando trabalho e dinheiro e, apesar de respeitar, não entende a fase vivida pela mulher.

Os amigos também estão longe, ocupados com seu acúmulo de filhos, trabalho e problemas. Os beijos, abraços e sorrisos dos pais, ela também não acumula mais. Eles também estão longe. A dispensa da avó também é relíquia do passado.

Agora, a menina que acumulava tudo, só tem uma coisa para acumular: tempo. Até que enfim! Assim, ela pode finalmente encarar a verdadeira fartura da vida. E, sem o peso do acúmulo supérfluo nas costas, pode enfim chegar muito mais longe.

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